FASCISMO EM GOTAS! — Nós e eles… (parte 2) — Fora petralhas!

Hierarquia: eles…

Judas e a traição

Há cerca de 9 anos, tive um encontro tão inesperado, quanto inusitado, com a fé cristã. Numa tarde de domingo, fuçando numa grande livraria, como adorava fazer naquela época (hoje fuço mais pela internet), pesquei de uma prateleira secundária, num canto daquele grande salão de consumo literário, um pequeno livro. Com uma gravura japonesa na capa, mostrando pessoas se abrigando da chuva, a cruzar uma ponte de madeira, exibia um título enigmático: O Silêncio. Ainda sem saber quem era Shusaku Endo, mas atraído por minha intuição de amante dos livros, simpatia confirmada pelo aviso bem marqueteiro, em fonte clara e visível, de que havia “prefácio de Martin Scorsese,” comprei.

“O Silêncio”, de Shusaku Endo, que Scorsese classifica como “obra-prima”, no seu prefácio de 2007, e confessa ter lido e relido incontáveis vezes, se tornou seu filme de 2016:

É claro que eu já sabia que Martin Scorsese é católico, mas nem imaginava que teria havido uma grande comunidade católica no Japão do séc. XVII, perseguida pela fé, os Kakure Kirishitan (literalmente, “cristão escondido”) e, bizarrice completa, um grande escritor japonês católico, no século XX. Shusaku Endo (1923-1996) escreveu, de fato, uma obra-prima. Como o trailer acima também mostra, o romance retrata, com tratamento ficcional sobre base de fatos históricos, a aventura de dois jovens padres portugueses, na tentativa de resgatar e, no decorrer desta tentativa, lograr compreender o que teria acontecido ao seu mentor e famoso teólogo, no distante Japão, algo grave o suficiente para fazê-lo apostatar (abjurar o Cristo) e cortar todo tipo de comunicação com a igreja européia. Porém, uma sinopse assim não faz juz à obra. Porque, sob este roteiro histórico superficial, o livro tem muitas e muitas camadas de significação, algumas bem pouco óbvias. Trata-se, num nível seguinte à leitura literal, da compreensão do conflito político da época, em que o shogunato rebela-se contra a dominação européia e trata de extirpar a influência portuguesa, representada pela Companhia de Jesus, embora privilegiando, ainda da Europa, a influência inglesa, menos missionária e intervencionista (embora tão eficaz quanto sabemos). Num outro nível, mais abaixo, trata do martírio, da experiência transcendente do sofrimento pela fé, coisa que nunca entenderei completamente, afora num nível somente intelectual, porque não tenho a fé. Em mais outra leitura, talvez a mais importante de todas, deslinda o significado filosófico da figura do Judas Iscariotes, o apóstolo traidor, o culpado, o alcaguete, que denuncia seu mestre Jesus em troca de 30 moedas de ouro.

Neste nível profundo, o Judas de Endo não é só um mero traidor. Não, de maneira alguma! Este Judas cumpre uma função crucial. É uma figura necessária! Em sua trama histórica, Endo apresenta os ritos e orações da igreja católica perseguida e de que maneira eram realizados, diante de uma imagem de Jesus ou da Virgem Maria, geralmente pintada sobre uma pequena tabuleta de madeira ou metal, a que chamavam fumi-e. Nesta época fatídica, o shogunato obrigava os padres, se descobertos, a renegarem a fé cristã, fazendo-os cumprir o ato simbólico de pisar sobre esta tabuleta. Tal sacrilégio, entretanto, na sua engenhosa trama, não é obtido dos padres por uma via direta. Ninguém é convencido, nem por argumentos religiosos, nem de qualquer outra natureza, a abandonar a própria fé. Não o fazem por aliciamento, nem por suborno, nem por tortura. Eles o fazem por um tipo particular de chantagem. Pois as autoridades passam a supliciar, não os padres, mas os fiéis, que, impiedosa e vagarosamente, vão sendo torturados e mortos, até que ao padre, a menos que insincero em sua fé, não reste outra alternativa que não a de imitar – num simulacro grotesco – o gesto redentor do Cristo, a saber, sacrificar-se para salvar seu rebanho, numa variedade de martírio que é mais patética que heróica: renegar, em público, a própria fé, pisando no Cristo da fumi-e.

Fumi-e (em japonês, fumi “pisar” + e “imagem”)

Padre Rodrigues, após a terrível e vexatória experiência, assim se expressa a seu parceiro, que também acabara de fazê-lo:

“Mesmo agora, na tabuinha tão gasta por tantos pés, esse rosto [de Jesus] ainda me encara com olhos cheios de piedade… ‘Pisa!’, diziam aqueles olhos compassivos. ‘Pisa! Teu pé sofre com a dor. Ele precisa sofrer como todos os pés que já pisaram nesta fumi-e. Mas essa dor já basta. Eu entendo a tua dor e o teu sofrimento. É por esse motivo que cá estou.’
‘Senhor, eu me ressentia com Vosso silêncio.’
‘Eu não estava em silêncio. Eu sofria ao teu lado.’
‘Mas mandastes Judas ir-se embora: «O que pretendes fazer, faze-o depressa». O que aconteceu com Judas?’
‘Não foi esse o sentido do que eu disse. Assim como te mandei pisar na fumi-e, assim também mandei Judas fazer o que ele ia fazer. Pois Judas estava tão angustiado quanto estás agora.”
Em Endo, Shusaku. O Silêncio. (p. 273). Trad. (do inglês) Mário Vilela. Ed. Planeta do Brasil, 2011.

Assim, o Judas de Shusaku Endo não é um Judas fácil; não é um mero judas-culpado que você, simplesmente, odeia. Não! Você, não apenas não consegue odiá-lo, como sente-se atraído por ele, identificado: você se vê Judas! Pois, nas leituras mais profundas, “O Silêncio” mostra que, no plano cristão, sem Judas, não haveria a Paixão de Cristo. No plano filosófico, que sem ele, não poderia haver o herói.

—Quem, após ler este livro, poderia sequer pensar em malhar o Judas?

A Malhação do Judas!

A malhação do Judas simboliza a morte do apóstolo Judas Iscariotes, no sábado de Aleluia. É uma tradição que está em vias de desaparecer, por conta da urbanização e da comunicação de massas. Muito popular na península Ibérica, disseminou-se por toda a América Latina, logo nos primeiros séculos de ocupação européia, trazida por portugueses e espanhóis. Tradicionalmente, consiste na exposição e espancamento de um boneco recheado de palha ou jornais velhos, geralmente amarrado a um poste de iluminação pública e, às vezes acompanhado por uma figura do demônio, como neste exemplo, da cidade de Salto, no interior de São Paulo:

Judas com o demônio, para a “malhação”. Salto, SP.

Com o tempo, a traição de Judas foi se estabelecendo como um ícone da expiação dos males e catástrofes que atingem as comunidades. Assim, os bonecos de malhação foram passando a assumir as personalidades de políticos e outras pessoas que, por algum mau motivo, adquiriam notoriedade. Foram assumindo o papel de símbolos da culpa universal.

Também faz parte da tradição brasileira da malhação que, no auge do espancamento, quando o manequim já começa a se desfazer, ateie-se fogo ao boneco, simbolizando a morte do apóstolo. Observa-se, entretanto, na tradição histórica cristã do Novo Testamento e dos textos apócrifos, que o apóstolo Judas não fora assassinado, nem tampouco executado por algum verdugo. Conta esta tradição que ele se enforcou, consumido por sua culpa e remorsos, embora tenha sido peça fundamental na paixão e ressurreição do Cristo. Esse desvio na fábula da Malhação do Judas, em que o suicído de origem passa a ser representado por um espancamento, seguido de assassinato, nunca é comentado (ao menos nos textos a que tive acesso e pelas pessoas de bem), imputando-se o costume de queimar o “Judas” a uma suposta origem pagã do evento, ligada às festas dionisíacas que marcavam o início e o final das colheitas, e que teriam convergido, por sincretismo religioso, com o Judas oficial cristão, personificação do mal. A explicação é difícil de ser verificada e não convence. Ainda mais porque, no ato de espancamento e queima – que é a representação simbólica de um assassinato qualificado –  não se acha qualquer sentido propiciatório de uma boa colheita, mas só ódio e vingança.

O que Endo faz em seu livro, como podemos ver, é o oposto daquilo que a “malhação do Judas” quer fazer. Porque, onde Endo mostra as nuances emocionais do ser humano real — incertezas filosóficas, iluminação religiosa, dúvidas existenciais — que são abismos de espectro contínuo (ver parte 1, no post anterior), característicos da condição humana, a “malhação” resume-se a reduzir, simplificar e nos apresentar, como caricatura rasa do sentimento humano, frente ao significado da experiência do trágico e da culpa, o ódio ressentido, trazido como sentimento binário, tosco.

Lula e Dilma como “Judas” (foto: Folha de S. Paulo)

O desenvolvimento social que gera o costume da Malhação do Judas, talvez nem tanto em seu caráter folclórico original, mas, com certeza, acentuadamente, em suas versões incendiárias e politizadas modernas, também é um reducionismo levado ao extremo. O mecanismo que conduz a ele é bem conhecido da psicologia, que o denomina projeção, um processo de repressão de pensamentos e emoções indesejados, seguido de sua atribuição projetiva a um alvo externo, geralmente outra pessoa.

O mecanismo de projeção, do modo como é explorado pela propaganda fascista, é muito bem representado no cinema, por exemplo, no filme de Thomas Vinterberg, “A Caça”:

Por trás e muito além das leituras óbvias da injustiça, do julgamento social fácil e do poder destrutivo da maledicência, o filme revela como um alvo específico, seja ele um ser humano, um grupo social ou de gênero, um partido ou um povo, pode ser eleito como receptáculo dos medos e inseguranças difusas das pessoas e alvejado pelo ódio ressentido e pela vingança, sem possibilidade de defesa, do mesmo modo como é perseguida e alvejada uma caça.

Na primeira parte desta discussão (post anterior) tocamos tangencialmente este ponto, quando discutíamos o processo de reducionismo exacerbado, que transforma grandezas contínuas em pares binários. Para que esta transformação contínuo-binário seja possível, é necessário que todas as demais gradações intermediárias sejam reprimidas, eliminadas (como vimos, elas são compactadas nos dois extremos). Assim, no exemplo mais óbvio deste fenômeno, que é o da homofobia, o homem inseguro, para se ver livre de suas dúvidas e atrações obscuras, para se transformar no pseudomacho, superior e contraposto à mulher, paga o preço do ódio ressentido por tudo que esteja entre, mas fora, dos padrões estritos dos dois pólos extremos e, por projeção, odeia todos os casos intermediários: gays, lésbicas, trans etc, porque neles vê a negação de sua pretensa certeza (na escolha binária pelo masculino) e neles projeta seus medos e incertezas sobre sua própria masculinidade.

No geral, o resultado grotesco desse processo é o aumento da violência contra os grupos sociais excluídos dos dois padrões binários. E isto ocorre para cada uma das grandezas, cujos espectros contínuos são corroídos e compactados pelo fascismo, num par artificial binário. Todos os intermediários são odiados e precisam ser negados e destruídos, simplesmente porque, na lógica fascista, não deveriam, não poderiam existir.

A outra face desta moeda, de sumo proveito para o fascismo, e que resulta da redução binária do gradiente entre o bem e o mal, pelos mecanismos que temos estudado, é o endeusamento do líder:

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Extraído das redes sociais, de postagem de terceiro.

Mas o mecanismo de projeção apresenta, ainda, uma outra variedade. Uma espécie de projeção de valor invertido, que tem base na repressão do sentimento de inveja. Quando o objeto de desejo já é possuído por outrem, a inveja resultante é reprimida e sofre uma “inversão de sinal”, de forma que o real detentor do objeto cobiçado, ao invés de ser admirado e conscientemente invejado, passa a ser submetido a um desprezo irracional e torna-se, ao cabo, alvo de ódio ressentido. O fenômeno foi magistralmente captado por outro artista, o escritor cubano Leonardo Padura, em seu romance “Herejes”, ao comentar escritos de Marx sobre o nacionalismo alemão, pela boca de seu personagem Elías Kaminsky:

 “Lo terrible, dice este hombre [Marx] con esos juicios tan inquietantes, es que, sin embargo, el sueño de los alemanes era justo lo inverso: parecerse a lo esencial de los judíos, o sea, ser puros de sangre y espíritu como decían ser los judíos, sentirse fieles a una Ley milenaria, ser un pueblo, un Volk, como decían los nacionalsocialistas, y gracias a todas esas posesiones maravillosas resultar indestructibles, como los judíos, quienes a pesar de no tener patria y de haber sido amenazados mil veces con la destrucción, siempre habían sobrevivido.” Em Padura, Leonardo. Herejes (p. 95). Ed. Tusquets, 1a ed., Cidade do México, 5a reimpressão, 2017.

 

Fora petralhas!

Dado o que vimos, creio que podemos dizer, sem sombra de dúvida, que é melhor não ser parte das tais pessoas de bem. Porque no fundo, ninguém, enquanto individualidade humana, corresponde perfeitamente a algum dos dois pólos compactados de uma escolha binária fascista. Porque, na verdade, somos todos intermediários: nem tão bons, nem tão maus; nem tão machos, nem tão femininos; nem tão inteligentes, nem tão estúpidos; nem tão perfeitos, nem tão viciosos. Somos apenas humanos.

Em compensação, também não somos dessa manada de minions padronizados, que o fascismo quer nos vender e a que quer nos acorrentar. A variedade infindável do ser e do pensar humanos nos enriquece muito mais. E nos abre a todas as possibilidades do fazer e do sentir, coisas que só os que são livres – e únicos, como indivíduos – podem ter.

Neste sentido, nos resta destacar a importância do conhecimento e da arte na formação dessa particular via de percepção e conhecimento, que põe ênfase na diversidade. Não por acaso, em toda essa construção teórica que fizemos, desde o início do post anterior, viemos apoiados na matemática e na ciência, na filosofia, em obras cinematográficas, no conhecimento de elementos básicos de psicologia e sociologia política e na literatura. Nesta parte 2, apoiamo-nos, particularmente, em obras de arte – do cinema e da literatura –, sem as quais não seria possível expressar os pensamentos que aqui compartilhamos. Enquanto isso, a vítima do fascismo, confinada a seu mundo bidimensional e polarizado, nem ao menos vislumbra as maravilhas com que podemos nos deleitar.

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Postagem de terceiro, em rede social

Dá pena!

Fazer o quê? Enquanto uns aplaudem a ignorância, de pé, outros vivem a riqueza inesgotável da vida, e aprendem com a arte a alargar suas capacidades de pensar e sentir.

Assim, chego ao final desta jornada, que se estendeu por duas postagens (talvez longas demais), apresentando fatos e explicações, que presentearam, assim espero, a leitoras e leitores, com as ferramentas exigidas para se identificar, com precisão e presteza, quaisquer ataques da visão de mundo hierárquica fascista. Entretanto, aqui nos encontramos e eu não defini, de forma clara e enumerativa, quem são, afinal, esses personagens.

Assim, você poderá me apontar, desapontado, e dizer-me que não identifiquei ninguém. Nem o “nós”, nem o “eles”.

—Mas… precisa?

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p.s. Não deixem de ver os filmes e de ler os livros. São maravilhosos!

4 respostas para “FASCISMO EM GOTAS! — Nós e eles… (parte 2) — Fora petralhas!”.

  1. Seu nome, no início, está como Luiz Modesto. Pra mim e outra pessoa. Você poderia corrigir, só pra agradar sua mãe?

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  2. Mandei. Mas as imagens não são copiadas no e-mail.

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  3. Obrigada! Vou reler o texto! Como disse, adorei! É de ler, reler, refletir, aprender, saborear!

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