O Ogro.
Em 1970, enquanto o Brasil se afundava no pântano mais profundo da ditadura, os “anos de chumbo” do general Médici, Michel Tournier lançava na França seu sombrio romance “O Ogro” (no original francês “Le Roi des Aulnes“), ganhador do prestigioso Prêmio Goncourt. Nele, o distópico personagem Abel Tiffauges é uma pessoa absolutamente medíocre e desprezível, mas que se mostra conveniente e até predestinada ao sucesso, por viver num momento de guerra e degradação civilizatória: a França derrotada e, em seguida, a Alemanha nazista e beligerante dos anos 1938-42. Abel mantém um diário maldito e, embora destro, escreve-o com sua mão esquerda, numa prática que ele mesmo denomina (intradutivelmente), “sinister writings”, que quer dizer “escritos canhotos”, mas também “escritos sinistros”. O livro, sombrio e arrepiante, ao mesmo tempo que banal, no seu princípio, vai desvelando não um, mas vários tipos de ogros nazistas, incluindo o comandante-em-chefe da Luftwaffe, Herr Goering, o Ogro de Rominten, além do professor Lutz e do prof. dr. Blaettchen, doutores em pseudo-ciência (provavelmente fictícios), e outros.

Personagem narrador, Tiffauges vai revelando, em sua escrita “sinistra”, os traços desviantes da visão de mundo de um ogro nazista. Em desespero pessoal, eu, que amo a fotografia, vejo Abel descobrir nessa arte o segredo da inversão de valores, característica do fascismo: “Mas é da ampliação da imagem, e das possibilidades de inversão da imagem que ela oferece, que os mais singulares poderes do fotógrafo derivam. Assim, não é meramente uma questão de metamorfose do preto para o branco e vice-versa. Há também a possibilidade, se você coloca o negativo invertido no projetor, de trocar esquerda por direita. Quando a fotografia é revelada, você então obtém uma dupla inversão–câmeras antigas até ‘tiram’ realmente a fotografia de ponta-cabeça também. O elemento mágico, seja benéfico ou maléfico, na fotografia, é amplamente trazido por estes pequenos mas característicos detalhes.” (Tournier, Michel. The Ogre. Doubleday &Co, 1972, p. 109). Meu desespero aqui provém, mais que de outra coisa qualquer, de ver a fotografia servir de parábola didática para o mito fascista da inversão do espectro ideológico, mas não devemos nos esquecer de que essa reversão de valores, operada pelo fascismo, serve a diversas causas, mormente à reinvenção da história (o passado mítico, que hoje revisitamos), à demonização da esquerda (o nazismo que era de esquerda, como querem os brasileiros fascistas), à inversão entre o bem e o mal (o apoio cristão das pessoas de bem à intolerância e à tortura). O requinte final é a reversão da acusação, operada para culpar a vítima (como é comum nos casos de estupro), atributo que também encontramos na escrita sinistra de Tiffauges: “A inversão benigna consiste em re-estabelecer o significado dos valores que a inversão maligna havia revertido. Satã, mestre do mundo, auxiliado por suas coortes de governantes, juízes, prelados, generais e policiais, seguram um espelho à frente da face de Deus. Como resultado, direita se torna esquerda, esquerda se torna direita, o bem é chamado de mal e o mal é chamado de bem.” (Op. cit., p. 74.)
Mas, porque urge ao fascismo inverter, inverter e inverter?
O Renascimento.
Na cultura ocidental cristã, pelos muitos séculos a que nos referimos pelo nome geral de Idade Média, e daí pelo menos até a erupção do Renascimento, toda explicação do mundo começava e terminava na religião. A verdade completa estava inscrita, por Deus, no livro sagrado, a Bíblia, e ao conhecimento humano era permitido apenas avançar com timidez e somente em termos de pequenos aprofundamentos na qualidade da compreensão humana dessas verdades que, por definição, eram de abrangência total e lá estavam escritas de forma definitiva. Ainda que, assim, o acúmulo de conhecimento estivesse tolhido, pelo simples fato de nada restar fora e além do conjunto dado da revelação divina, as contendas interpretativas pareciam surgir e multiplicar-se a partir do nada, ou, talvez, como resultado da impossibilidade prática de tentar-se anular a criatividade humana. Quando as novas ideias interpretativas não terminavam na fogueira (queimadas, frequentemente, junto com seus respectivos criadores e defensores), eram incorporadas ao edifício da fé e do conhecimento oficiais da Igreja (os conceitos eram intercambiáveis, na época). Como enunciou o padre Ignatius de Loyola, numa época posterior, em que a cizânia interpretativa já havia dado vida e trela ao cisma dos protestantes, “a unidade entre muitos não pode ser mantida sem ordem, nem a ordem sem o freio apropriado da obediência entre inferiores e superiores.” (Em Alexander, Amir. Infinitesimais, p. 16. Farrar, Straus and Giroux, Kindle ed.)

Nesta época conturbada, no reduzido reduto dos matemáticos e universitários europeus, travava-se um debate aparentemente irrelevante para a política, mas que mostraria ser de enorme importância para o futuro da ciência e do liberalismo político, sobre “Os Infinitesimais”. Em livro que tem este título Amir Alexander discute as possíveis implicações históricas–e as interrelações entre seus participantes–do debate que então dividia os matemáticos, a saber se, na formulação mais simples do problema, toda linha é composta por uma fila de pontos “indivisíveis”. Embora pareça bizantina, a discussão começa a fazer sentido quando notamos que, no partido dos “indivisíveis” se alinhavam os também indivisíveis “defensores da liberdade intelectual, do progresso científico e da reforma política; do outro, os campeões da autoridade, do conhecimento universal e imutável, e da hierarquia política fixa” (Op. cit., p. 14), como é o caso do sisudo padre Loyola. A hipótese é a de que a hierarquização rígida, atingindo o todo de uma visão de mundo, tolhe a criatividade e impede o progresso. A evidência histórica é a de que, a Europa mediterrânea, que havia liderado o avanço artístico e científico até o final da era renascentista, uma vez dominada pela visão hierárquica do mundo, capitaneada pela Companhia de Jesus, do padre Loyola, perde a liderança do progresso no conhecimento e na ciência para o norte e noroeste europeus.
Nem passado, nem futuro.
E aqui encontramos mais uma “inimiga” do fascismo: a ciência. Como afirmou Stephen Greenblatt, no seu delicioso “Ascensão e Queda de Adão e Eva” (W.W. Norton & Company, Kindle ed., p. 269), “o Darwinismo não é incompatível com a crença em Deus, mas é certamente incompatível com a crença em Adão e Eva”, porque “o paraíso não foi perdido; ele nunca existiu”. Então, os fascistas são duplamente “traídos” pelo conhecimento. Embora sejam apaixonados pelo grupo do padre Loyola – porque o fascismo se baseia numa hierarquia política fixa e advoga a primazia de uma autoridade total e imutável, representada pelo líder – se vêem impedidos de buscar este ideal no passado real, porque, na história real, esta visão não prevaleceu. Paralelamente, se vêem tolhidos na pretenção de opor a “história” bíblica ao conhecimento verdadeiro do mundo e da história culta, porque a ciência desmascara, a todo momento, a verdade imutável dos seus ícones tradicionalistas e sua leitura literal e burra dos textos sagrados.
E, se o fascismo se volta para o futuro, para lá tentar posicionar seu ideal político, aí também fracassa, porque o caminho para a construção de qualquer futuro passa pelo aprofundamento e pelo acréscimo aos conhecimentos pré-existentes sobre o presente e o passado, ou seja, exige o auxílio do conhecimento e da ciência, os préstimos de tudo que eles negam e destróem, em seu raso tradicionalismo. Então, não há saída, ao menos no mundo racional.
O carrossel.
Nesta encruzilhada do fascismo, sem outro caminho possível, resta-lhe recolher-se ao mito de um tradicionalismo baseado num outrora que nunca existiu, num mundo sem história e sem ciência, sem passado e sem futuro, que apenas se repete e repete como os dias da semana e sua propagando política, irracional e atemporal, onde a verdade não existe ou foi assassinada. Na linguagem crua e sinistra do nosso velho ogro Tiffauges, a distopia fascista e macabra é assim: “É claro que a trajetória do tempo, aqui, não é linear mas circular. Você não vive na história, mas no calendário. Assim é o reino indisputado do eterno retorno – a imagem do carrossel é exata. O hitlerismo é resistente a qualquer ideia de progresso, criação, descoberta ou imaginação de um futuro desconhecido. Sua virtude não é a ruptura mas a restauração, donde o culto da raça, ancestrais, os mortos, o chão…” (Op. cit., p. 265-6.)
Portanto, como última alternativa, o fascismo tenta criar um mito atemporal, que não é o passado real (porque este, como já vimos, não lhe serviria), nem tampouco é um projeto de futuro idealizado, capaz de produzir um plano de ação política coerente, (porque um projeto exige conhecimento, o qual o fascismo abomina). É por estas razões que, no fascismo, tudo que é fato será dito falso, o que é da direita será dito de esquerda, o que é belo será falseado como feio e a mentira será sempre dita, afirmada e defendida, porque a verdade… Ah, esta precisa ser destruída.
Ao fascismo resta, somente e afinal, delirar sobre um passado que nunca foi.
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