O limiar do inaceitável.
A discussão sobre a imparcialidade da imprensa, no post anterior, nos serviu, dentre outras coisas, para explicitar algumas das estruturas do discurso propagandístico fascista:
- Afirmar a gravidade da preocupação com o não-problema para, ao fim e ao cabo, torná-lo um real problema.
- Propor a política que agrava um outro problema (não mencionado), como se fosse solução para um primeiro problema (explicitado), que na verdade é irrisório ou imaginário.
- Atacar um grupo social depositário do ódio, para apresentá-lo como culpado dos males que o próprio grupo dominante causou.
São clichês onipresentes no discurso fascista, repetidos ao infinito, encapsulados nos mais eficazes meios de comunicação social que a tecnologia moderna possa oferecer.
No nazismo, a demonização dos judeus, a supremacia da raça ariana, a traição judaica da rendição alemã (na primeira grande guerra), a ameaça degradante aos costumes e à família por parte dos comunistas, todas essas e outras “verdades nazistas” eram veiculadas pelos meios de comunicação mais modernos de sua época: o rádio e os totens urbanos de publicidade, conhecidos como “Litfass columns,” invenção do gráfico prussiano Ernst Litfass, que revolucionou a publicidade na República de Weimar.
“O totem Litfass é alto e imponente; suas amplas e curvadas superfícies oferecem espaço para posters de propaganda, a maior parte das vezes de peças, concertos, ‘Noites no Scala’, cigarros Overstolz. Na infindável temporada política de 1932, entretanto, os posters eram políticos. [The Litfass column is tall and squat; its broad, rounded surfaces provide space for advertising posters, most of the time for plays, concerts, ‘Evenings at the Scala,’ Overstolz cigarrettes. In the endless political season of 1932, however, the posters are political.]”
“‘Nossa guerra será principalmente conduzida com posters e discursos,’ Goebbels explica a Hitler no início de 1932. [‘Our war will mainly be conducted with posters and speeches,’ Goebbels explains to Hitler early in 1932.]”
Em Hett, Benjamin Carter. The Death of Democracy, pág. 131 e 132. Ed. Kindle, 1a ed, 2018.
No mundo ocidental contemporâneo, o novo totem Litfass são as redes sociais, notadamente o WhatsApp, o Twitter e o Facebook. É o retrógrado de roupa, porque os princípios norteadores das campanhas publicitárias continuam os mesmos:
“Goebbels pensou cuidadosamente sobre como convencer pessoas, mas diferentemente de Hitler ou Ludendorff, não estava muito interessado nos outros tipos de propaganda política. Seu modelo era a publicidade comercial, e ele entendeu a idéia central de que a publicidade deveria procurar influenciar o consumidor com mensagens simples, parcialmente subliminares, repetidas indefinidamente. Slogans inesquecíveis e cativantes eram essenciais. [Goebbels thought carefully about how to persuade people, but unlike Hitler or Ludendorff, he was not much interested in other kinds of political propaganda. His model was commercial advertising, and he understood the prevailing idea that advertising should aim to influence the consumer with simple, partly subliminal messages, endlessly repeated. Catchy and memorable slogans were essential.]” Em Hett, Benjamin Carter. The Death of Democracy, pág. 194. Ed. Kindle, 1a ed, 2018.
Muito além dos objetivos políticos imediatos, importa sobremodo para a propaganda fascista criar um ambiente de instabilidade em relação ao que é aceitável de se dizer ou acreditar. Numa sociedade moderna laica e desenvolvida, a democracia pressupõe uma base comum de entendimento entre as pessoas e entre os grupos sociais, um pano de fundo em que a realidade objetiva, a história e as normas básicas de convivência social e política, que não estão escritas, mas valem mais do que se estivessem, possam ser tomadas como garantias indiscutíveis:
“Para uma democracia funcionar, todas as partes tem de reconhecer que têm ao menos um mínimo em comum e que os compromissos são tanto possíveis como necessários. [For a democracy to work, all parties have to acknowledge that they have at least some minimal common ground and that compromises are both possible and necessary.]” Em Hett, Benjamin Carter. The Death of Democracy (p. 14). Henry Holt and Co.. Kindle Edition.
“Para debater honestamente o que nosso país deveria fazer, quais políticas ele deveria adotar, nós precisamos ter uma base comum de realidade, inclusive sobre o nosso próprio passado. História, numa democracia liberal, precisa ser aderente à norma de veracidade, produzindo uma visão precisa do passado, ao invés de uma história providenciada por motivações políticas. [In order to honestly debate what our country should do, what policies it should adopt, we need a common basis of reality, including about our own past. History in a liberal democracy must be faithful to the norm of truth, yielding an accurate vision of the past, rather than a history provided for political reasons.]” Em Stanley, Jason. How Fascism Works (p. 19). Random House Publishing Group. Kindle Edition.
Como vimos nas postagens anteriores, entretanto, a política do nós e eles busca precisamente destruir esta base comum de realidade, tão necessária à convivência e ao debate políticos: se o seu adversário político faz parte do eles (como não pode deixar de fazer, no pensamento fascista), não será possível haver debates, nem soluções de compromisso, mas apenas confrontação e xingamentos.
Além da promoção dos objetivos políticos especificos da versão local do fascismo de que se trate, a propaganda fascista também tem o importante papel de formar os consumidores de seus discursos, o que pode ser feito sem mesmo mencionar qualquer meta política específica, mas somente atacando os pontos fulcrais da base comum de realidade e de percepção histórica dos grupos de interesse, naqueles aspectos em que se mostrem inseguros, duvidosos ou incoerentes. Assim, o mais importante para a propaganda fascista, antes mesmo de publicizar seus objetivos especificamente políticos, é aquilo a que proponho chamarmos de um embotamento, ou elevação, do limiar do inaceitável.
Toda sociedade democrática tem valores éticos (e instituições que os materializam) que dão sustentação à convivência social e ao debate político. Fazem parte dessa base comum a crença na efetividade do conhecimento científico, na existência de uma realidade objetiva, nos valores da liberdade (inclusive de imprensa e opinião), da verdade e dos direitos civis, na eficácia (ainda que tardia) da Justiça, na confiabilidade, ainda que provisória, do sistema de representação republicana e do sistema eleitoral, dentre outros.
Em situações normais de funcionamento da democracia, afirmações que vão de encontro ou são incompatíveis com estes valores, imediatamente, causam espanto e repulsa, sendo normalmente rechaçadas como inverídicas ou altamente suspeitas, numa espécie de reação automática e instintiva, que demandaria a apresentação de provas muito contundentes para ser superada e, a partir daí, poder-se considerar tais afirmações seriamente. Tal como disse Carl Sagan, numa versão memorável à Navalha de Hitchens, “alegações extraordinárias exigem evidências extraordinárias.”
Entretanto, este sistema de base comum de conhecimento e aceitação de divergências funciona como um sistema perceptivo, tal como a audição ou a visão. Na audição (e de modo paralelo na visão) há um limite de estímulo abaixo do qual nada é percebido (a que se chama limiar), que varia muito pouco entre os indivíduos. Entretanto, tomando a audição como exemplo, em determinadas condições de repetição contínua de estímulos exagerados, como ocorre, por exemplo, no caso de operários trabalhando em indústrias que geram muito ruído, ocorre a condição conhecida como perda auditiva, que corresponde a um aumento do nível de limiar auditivo, ou seja, eleva-se o patamar de volume de som, a partir do qual –e só então– o som é percebido pelo sistema auditivo (a respeito, veja os estudos em psicofísica, em particular a Lei de Weber-Fechner, que estabelece que quanto mais intenso o estímulo de base, maior a diferença necessária para que seja percebida uma mudança sensorial significativa).
Em sociedades democráticas, existe um limiar do inaceitável que funciona de modo similar e é determinado pelo nível de tolerância social aos excessos e desvios em relação à base comum de conhecimento e ao comportamento social considerado aceitável. Assim como na audição, ainda, a exposição contínua e extremada a mensagens desviantes desta norma comum de razoabilidade, causa um stress semelhante (num paralelo figurativo) ao que o ruído elevado de máquinas e britadeiras causam à audição do operário que as opera (e as perdas cognitivas podem ser temporárias ou permanentes). No caso da sociedade democrática e laica, a exposição contínua e extremada a violações de sua base comum de conhecimento, causa um embrutecimento desta especial percepção, que passa a demandar um grau sucessivamente maior de transgressão para que o sistema social alavanque uma reação de rejeição a essas mensagens atentatórias. Vale dizer que se eleva, lenta e paulatinamente, o limiar do inaceitável.
A elevação do limiar do inaceitável é o primeiro objetivo da propaganda fascista, porque ela prepara o cenário para a introdução dos grandes temas do programa político do fascismo. O processo se introduz por meio de declarações alopradas, como a promoção do terraplanismo e a negação dos problemas levantados pela comunidade científica, tal como o aquecimento global. (Se você se lembrou, por aqui, das fakenews não-políticas, acho que estamos nos entendendo). Mas depois, à medida em que se vai elevando o limiar do inaceitável para os grupos sociais alvo, prossegue adiante, com a substituição dos sistemas de valores civis pelos códigos morais religiosos, com o solapamento da confiança nas instituições, nos valores democráticos, nos sistemas de Justiça e dos processos eleitorais. Lembra-se da urna eletrônica? Fraudada ou não fraudada, dependendo do resultado da eleição? — E, enquanto a torrente de fakenews vai assumindo, mais e mais, uma feição política, paralelamente, a publicidade fascista embotadora do limiar do inaceitável prossegue avançando, com a promoção do irracionalismo, da irrealidade e do “mito” no lugar da história, entremeados com campanhas pelo descrédito da imprensa livre, das instituições de ensino, de produção de ciência e de arte, que são os bastiões da criatividade, da cultura e do pensamento livre.
Repito: o primeiro trabalho da propagando fascista é elevar o nível de limiar do inaceitável, para assim poder destruir a base comum de realidade que permite, à sociedade democrática e laica, funcionar.
Dito isso, finalizemos declamando, publicitariamente, com Bertold Brecht:
“Nós vos pedimos com insistência:
Nunca digam – Isso é natural.
Diante dos acontecimentos de cada dia,
Numa época em que corre o sangue,
Em que o arbitrário tem força de lei,
Em que a humanidade se desumaniza,
Não digam nunca: Isso é natural,
A fim de que nada passe por imutável.”
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