FASCISMO EM GOTAS! —O Estado mínimo.

Arbeit Macht Frei

Durante toda sua campanha presidencial, e desde o início de seu governo até agora, Jair Bolsonaro vem atacando as políticas sociais implantadas pelos governos anteriores, lançando seus partidários em campanhas pelas redes sociais contra os programas de apoio social, como as cotas sociais na educação e a proteção às mulheres, as políticas assistenciais como o “Mais Médicos” e o “Bolsa Família”, a tutelagem estatal de grupos ameaçados, como indígenas e quilombolas e as ações afirmativas em favor de minorias. Em outra frente, nomeou para o Ministério da Economia o sr. Paulo Guedes, economista conhecido pelo seu alinhamento com a Escola de Chicago, defensora do liberalismo econômico mais radical e voltado para as políticas de redução do Estado, para o enfraquecimento dos sindicatos e de outros meios de organização dos trabalhadores e à redução dos mecanismos de proteção social dos desvalidos, como os sistemas de previdência social e saúde pública.

Embora este conjunto de políticas possa parecer o normal e esperado, da parte de um governo posicionado do lado mais à direita do espectro político democrático, quando aparece lado a lado com a promoção dos mecanismos de vitimização do grupo social privilegiado e com a denúncia “vazia” de uma suposta violação às virtudes do trabalho e da meritocracia, todos os alarmes anti-fascistas começam a soar.

Em 1919, o Partido Nazista ainda se chamava—meu Deus!, agora vou colocar os “olavetes” em polvorosa—Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores da Alemanha (com a sigla DAP, em alemão). Naquele ano, ele firmou, em suas “diretrizes”, que lutava “Contra todos aqueles que não criam nenhum valor, que produzem ganhos sem nenhum trabalho físico ou mental.” Conforme Jason Stanley (Como o Fascismo Funciona, p.157. Random H.P.G. Kindle Ed.), a solução proposta por eles era “desmantelar o Estado e substituí-lo pela nação. Ao contrário do Estado, a nação prescinde de mecanismos de ‘bem-estar’, que Hitler denuncia por roubar aos indivíduos sua capacidade de independência econômica. O Estado representa a redistribuição da riqueza dos cidadãos esforçados para minorias ‘não merecedoras’, fora da comunidade étnica ou religiosa dominante, que estariam levando vantagem sobre esta.”

Aqui no Brasil, um dos grupos que compõem esta “escória”, que “não cria nenhum valor”, são os indígenas, como a ilustre senadora do PSL-MS aponta (e recebe a merecida resposta):

O que há de diferente nesta diminuição do Estado são dois detalhes um pouco sutis, que vão além da mera redução de políticas assistenciais e do cancelamento das políticas assistenciais. O primeiro detalhe é o significado desta “nação”, que deveria supostamente substituir o Estado. A nação, no sentido nazista, corresponde exatamente aos grupos sociais que, nesta série, denominamos o nós, as pessoas de bem, de modo que a proposta de criar um Estado reduzido quer dizer colocar o Estado a serviço, exclusivamente, dos grupos incluídos no conceito de nós. O segundo detalhe é o sentido viesado da expressão ‘não merecedoras’. Quando um fascista se refere à dicotomia entre “esforçados” e “não merecedores”, vêm-nos à mente a dicotomia entre as “pessoas de bem” versus “eles, os criminosos”: ele está estabelecendo o mesmo tipo de dualidade a que nos referimos, quando estabelecemos o binário nós eles, por intermédio do mito cínico da falsa meritocracia. Para quem seguiu, nas postagens anteriores, a construção do universo mental fascista, gota por gota, já está aparelhado para identificar, em variáveis como o racismo, o desprezo pelas mulheres, a crença de que os pobres são preguiçosos (e por isso pobres) e os ricos são ricos porque são empreendedores, uma grande e única mentira. Sônia Guajajara evidencia uma das opiniões divergentes, que emergem do eles, ao menos enquanto a claudicante democracia brasileira ainda o permite.

No caso brasileiro, os mecanismos de bem-estar (“welfare”) são, precisamente, a previdência e seguridade social, mais as políticas assistenciais e afirmativas que acima citamos, todas elas objeto de ataque por parte do governo Bolsonaro, sendo o último desses ataques a promulgação do Decreto nº 9.759/2019, que “Extingue e estabelece diretrizes, regras e limitações para colegiados da administração pública federal”. Os colegiados aí referidos e extintos incluem mais de 35 órgãos de participação democrática e direta da sociedade civil, entre eles o Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de LGBT, a Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, o Conselho Nacional dos Direitos do Idoso, e pasmem, o Conselho da Transparência Pública e Combate à Corrupção. Dirão os mitólogos de plantão que o Decreto prevê a recriação dos ora extintos, ou a criação de novos conselhos, mas ninguém acredita seriamente que os órgãos de consulta à sociedade sobre direitos civis e de minorias serão sequer cogitados, porque, dentre os ataques desferidos pelo novo decreto, consta, em seu artigo 10, a revogação da própria política nacional de participação social (Decreto nº 8.243/2014), que previa o reconhecimento da participação social do cidadão, como parte integrante dos direitos civis e da política de Estado. Conforme afirmou o presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana do Estado de São Paulo, Dr. Dimitri Sales (PUC/SP), “Com o fim da participação oficial da sociedade civil nas deliberações do Estado Brasileiro, extingue-se a essência da participação política, restando cada vez mais uma democracia formal pálida, limitada a processos eleitorais que servem tão somente para legitimar atos autoritários sustentados pelo manto da legalidade ou eleger governantes pouco comprometidos com a própria democracia.”

Por isso é que a solução, indicada pelos fascistas, para resolver a crise fiscal do Estado NÃO É a taxação dos dividendos, das heranças e do patrimônio, que são taxados na esmagadora maioria dos países capitalistas avançados, mas aqui não. Como repete a mídia formal papagaia, nós já somos taxados demais! (Lembrem-se que nós é a nação dos nazistas). A única solução visível e imaginável, então, é violentar a seguridade social e acabar com as aposentadorias que, afinal, só ajudam a eles, que são “não-merecedores”, tanto quanto os indígenas de Sonia Guajajara.

A frase em alemão “Arbeit macht frei” significa “o trabalho vos libertará” e apareceu, pela primeira vez, como título de romance de autoria do filólogo alemão Lorenz Diefenbah, sendo depois adotada como slogan por várias instituições alemãs e austríacas, no início do século XX. Foi elevada à notoriedade mundial pelos nazistas, que a colocaram na entrada de alguns de seus campos de concentração, primeiro no portão de entrada do campo de Dachau, por obra do oficial da SS Theodor Eickel, que teve a ideia copiada por Rudolf Höss, em Auschwitz. A ironia dessa utilização pode ser entendida como parte da política de inversão de significados, cujas razões apresentamos na última postagem, Mito Revisitado, mas vai bem além disso. Ela remete, principalmente, à meritocracia e à premiação do esforço individual, contraposto à indolência e oportunismo dos “não-merecedores”.

Segundo Hannah Arendt, “A característica essencial da propaganda fascista nunca foi suas mentiras, porque isso é uma coisa mais ou menos comum na propaganda, em qualquer época ou lugar. O ponto essencial era que ela explorava o antigo preconceito ocidental que confunde realidade com verdade, e torna ‘verdadeiro’ o que, até então, somente poderia ser visto como mentira.” Este conceito é difícil e requer que paremos um momento para pensar nele. Hannah se refere aqui à construção intencional de uma realidade mentirosa, com apoio da propaganda e de políticas estatais cínicas e intencionais. Ela toma como exemplo a campanha nazista, anterior à guerra, que visava convencer a opinião pública de outros países de que os judeus seriam uma multidão de mendigos sem-teto, que só sobreviveriam como parasitas no organismo econômico de outras nações. Isso era, claro, uma mentira, mas, depois de alguns anos de violações, expropriações, perseguições e pauperização intencional, os judeus alemães que cruzaram as fronteiras para se refugiar em outros países estavam, na realidade, reduzidos à condição de mendigos sem-teto, dependentes de ajuda estatal, tornando real—e, portanto, verdade—a afirmação anterior da propaganda nazista. Conforme esclarece Stanley, “O argumento de Arendt é que a irrealidade fascista é uma nota promissória a caminho de uma realidade futura que transforma em fato, pelo menos o básico daquilo que, certa vez, foi um mito estereotipado. A irrealidade fascista é, como Arendt explica, um prelúdio para a política fascista.” (Op. cit., p.161.)

Caro e raro leitor, eu lhe peço, encarecidamente: faça um exercício mental simples e pense no exemplo de Hannah Arendt a respeito da propaganda fascista sobre os “judeus sanguessugas”, seguida da política, do governo nazista, de perseguição e pauperização daquele povo. A seguir, substitua os “judeus” pela “educação brasileira dominada pela ideologia de Paulo Freire” e a “política de perseguição ao judeus”, pela política de “escola sem partido”. A continuarem estas políticas, a destruição da educação brasileira se tornará fato, com certeza. Mas a culpa de Paulo Freire se tornará verdade? —Por meio da condescendência com as invasões das terras indígenas, associada à extinção dos mecanismos políticos que poderiam defender aqueles povos (como os conselhos que ora vimos) e ao enfraquecimento do IBAMA e da FUNAI, políticas cínicas e intencionais do governo Bolsonaro, a premissa fascista de que os indígenas seriam párias indolentes, miseráveis e dependentes da caridade estatal, se tornará, em pouco tempo, uma realidade. E, portanto, se tornará verdade?

Até quando a sociedade civil brasileira assistirá inerte à destruição de sua frágil democracia?

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