Perigo comunista?

“Você pode influenciar mil pessoas, apelando para os preconceitos delas, mais rápido do que você convence uma pessoa pela lógica.”
Robert A. Heinlein (via Kakutani, Michiko. The Death of Truth (p. 135). Crown/Archetype. Kindle ed.)
Na política fascista, as noções opostas de igualdade e discriminação ficam misturadas uma com a outra, por consequência da contradição entre a igualdade, intra-grupo, dos compõem o “nós” (e intra-grupo dos que compõe o “eles”) e a discriminação sistemática e obrigatória, extra-grupo, dos que compõem o “eles”, em relação ao “nós”. (Stanley, Jason. Op. cit., p. 93) Essa diferenciação hierárquica entre as duas classes é imposta pela necessidade de justificar a diferença de valor (hierárquico) atribuído às duas categorias de pessoas. No melhor exemplo, racismo: o negro “precisa” ser pior que o branco, porque, sendo ambos homens, não haveria outra justificativa para agrupar estes no “nós” e os primeiros no “eles”.
Paradoxalmente, uma das características necessárias do fascismo eterno, na visão de Umberto Eco, é a de que os adeptos do fascismo devem sentir-se humilhados pela riqueza e pela força do inimigo. Diz este pensador: “Quando eu era criança, ensinavam-me que os ingleses eram o ‘povo das cinco refeições’: comiam mais frequentemente que os italianos, pobres, mas sóbrios. Os judeus são ricos e ajudam-se uns aos outros graças a uma rede secreta de assistência mútua. Os adeptos precisam, contudo, ser convencidos de que podem derrotar o inimigo. Assim, graças a um contínuo deslocamento de registro retórico, os inimigos são, ao mesmo tempo, fortes demais e fracos demais.” (Op. cit. Record. Kindle Ed.)
Eco não detalha como funcionaria este deslocamento de registro retórico, nem explicita as razões pelas quais os adeptos deveriam sentir-se humilhados pela riqueza e pela força do inimigo. As razões, suspeito, são múltiplas e de raízes primordialmente psicossociais, dentre as quais destaca-se o medo. Medo que provém, segundo Jason Stanley (Op. cit. pág. 94) do fato, estabelecido em uma longa tradição de pesquisas, de que o aumento na visibilidade de membros do grupo de minoria tradicional é experimentado pelos grupos dominantes como ameaçador. Stanley apresenta pesquisas indicando, por exemplo, que 45% dos eleitores de Trump acreditam que os brancos são o grupo racial mais discriminado nos EUA. No Brasil, num fenômeno similar, a classe média acredita, piamente, que a defesa dos direitos humanos favorece os criminosos e vitimiza a polícia, assim como crê que as políticas afirmativas, como a de cotas sociais, nas universidades, favorece a “incompetência” e a “vagabundagem” de estudantes negros e, portanto, vitimiza os estudiosos e meritórios estudantes brancos.
No ranking dos sentimentos de humilhação do fascista brasileiro, lugar especial é ocupado pelo chamado complexo de vira-lata, pelo que se denota a noção distorcida de que tudo que se é ou se faz em outros países (aqui já observado o irracionalismo fascista, por incluir em “outros países” somente o primeiro mundo) seria obrigatoriamente melhor e mais meritório que os sucedâneos brasileiros, que seriam sempre inferiores. É evidente que o complexo tem raízes profundas no passado colonial do Brasil e na internalização dos valores hierárquicos estabelecidos pela relação exploratória entre matriz e colônia. Mas, o principal a notar aqui é que o uso deste sentimento de vitimização com objetivo de projetar esta mesma hierarquia doentia entre as pessoas de bem e os outros, serve como luva para obscurecer a contradição, real e gritante, entre a luta por igual respeito, entre vira-latas e cães de primeiro-mundo, de um lado, e a luta pela perpetuidade da dominação, do eles pelo nós, de outro.
A propaganda fascista lança mão das ferramentas que já descrevemos em outras postagens e usa e abusa desses sentimentos de humilhação e ameaça para reforçar os preconceitos pré-existentes no público-alvo de suas campanhas, em proveito de suas agendas políticas. Cotas sociais, direitos de presos, feminismo, direitos de gênero, igualdade racial —todo e qualquer tema que busque aumentar a visibilidade das minorias, seja pela defesa de seus direitos, seja pela denúncia das injustiças cotidianas, é maliciosamente invertido e transformado no seu oposto: uma ameaça ao status e ao bem-estar das pessoas de bem.
Na descrição de Jason Stanley, para o caso estadunidense, “a política fascista trata as desigualdades estruturais por meio da tentativa de invertê-las, distorcê-las e de subverter o longo e duro esforço empreendido para endereçá-las. Ação afirmativa, no seu melhor, foi concebida para identificar e tratar desigualdades estruturais. Mas, apresentando falsamente a ação afirmativa como desvinculada do mérito individual, alguns de seus detratores reclassificam os defensores da ação afirmativa como buscadores de seu próprio ‘nacionalismo’ baseado em raça ou em gênero, em detrimento dos esforçados americanos brancos, a despeito de toda evidência.” (Op. cit. pág. 99.) É uma descrição muito parecida com a que poderíamos dar, no Brasil, para os defensores da meritocracia (que discutiremos brevemente, adiante) ou para os contrários às cotas sociais.
No caso brasileiro, temos como oportuno exemplo o noticiário recente sobre as “comemorações” do 31 de março, incentivadas e determinadas pelo presidente. Nosso governo fascista não apenas nega que o regime militar brasileiro tenha sido uma ditadura, como exalta seus supostos “feitos”, que resume como sendo “impedir que o Brasil de 1.964 se tornasse comunista”. Dentro de seu delírio, a violência, a tortura e o autoritarismo eram as únicas formas de combater um poder tão extraordinário como o “comunismo brasileiro”, donde lançar mão destes recursos extremos, nestas circunstâncias, não configuraria uma ditadura. O fato de que os movimentos “subversivos” contavam com parcos recursos, pequenos contingentes e baixo apoio de uma população tradicionalmente conservadora não importa, posto ser apenas a realidade. A negação do óbvio e a exaltação da pseudo-conquista fazem sentido, somente, nessa lógica distorcida, onde o mito da vitória, contra o imenso monstro comunista imaginário, é o que vale.
Aqui, se faz necessário abrir um pequeno parêntesis, porque as afirmações acima, considerando que a ditadura brasileira esmagou a resistência oposicionista, parecem negar a assertiva de Umberto Eco, de que “Os fascismos estão condenados a perder suas guerras, pois são constitucionalmente incapazes de avaliar com objetividade a força do inimigo.” (Op. cit. Record. Kindle Ed.) Vale lembrar que a máxima de Eco diz respeito às guerras reais – entre Estados soberanos, minimamente equiparáveis em poderio – e não à repressão de movimentos políticos internos, representando interesses de minorias. Além disso, no caso da pretensa luta, da ditadura brasileira, contra o “monstro” comunista, o que prevaleceu não foi o poder da organização militar, mas o seu contrário, i.e. o predomínio da desordem e indisciplina militares, em que a hierarquia era constantemente desafiada e desrespeitada, conforme descreveu, com brilhantismo, o jornalista Elio Gaspari, na sua coleção de obras sobre a ditadura militar brasileira: “o regime militar, outorgando-se o monopólio da ordem, era uma grande bagunça.” (A Ditadura Envergonhada, pág. 41. Comp. das Letras, 2002.) No corpo da obra de Gaspari, como em toda a historiografia que trata da época, fica claro que o poder adversário, representado pelos grupos políticos de esquerda, tolerados ou clandestinos, foi enormemente exagerado pela propaganda fascista da ditadura, tanto no contingente e no poder de fogo, como na extensão de seu apoio popular, de forma que o recurso às cruas formas de repressão, tortura, eliminação física e censura, absolutamente, não se justificariam, em nenhuma doutrina militar imaginável. Vê-se, então, a confirmação da regra, com a caracterização do inimigo como forte demais e seu esmagamento, para demonstrá-lo, no seu oposto, fraco demais. Arriscaria dizer que (num exagero da prática pouco científica do “e se?”), tivesse a ditadura enfrentado um inimigo de magnitude semelhante à sua, dada a grande bagunça e falta de disciplina, teria sido derrotada.
Mas, voltemos ao nosso assunto principal. O produto dessa contradição entre o inimigo, ao mesmo tempo, “forte demais” e “fraco demais”, nos atira aos braços do mito da meritocracia. Embora a minoria branca e rica, que forma nossa elite, detenha, como sempre o fez, a maior parte do poder e do controle social, aquele especial grupo de homens que compõem o nós (o qual não coincide exatamente, note-se, com a elite), ainda assim sente-se como vítima. O sociólogo Michael Kimmel, em seu estudo Angry White Men (2013), conecta este sentimento de vitimismo com a perpetuação do passado mítico patriarcal, no qual qualquer integrante de minorias poderia elevar-se à elite, simplesmente trabalhando duro e se esforçando muito. Como bem observa Jason Stanley (Op. cit, pág. 101), “Lamentavelmente, um tal mundo nunca existiu; as elites econômicas sempre deram um jeito para conseguir reproduzir-se, apesar destes ideais de uma meritocracia. Mas isso não impediu as pessoas de acreditar. Isso é o sonho americano. E, quando alguém falha, é humilhado, não restando onde aplacar sua raiva. Enunciar um passado mítico hierárquico trabalha para criar expectativas irrealistas. Quando estas expectativas não são alcançadas, isso é sentido como vitimização.” O autor também observa como o mesmo tipo de mecanismo psicológico leva à misoginia, tão comum entre os fascistas. Cita o trabalho de Kate Manne, que em seu livro Down Girl (2017), traça uma distinção entre patriarcado e misoginia: “Patriarcado, de acordo com Manne, é a ideologia hierárquica que engrendra expectativas irrealistas de status. Misoginia é o que resta às mulheres, que são responsabilizadas quando as expectativas patriarcais terminam frustradas.” (Op. cit., pág. 101)
E, no âmago das crenças que alimentam a vitimização está o nacionalismo, que é o coração do fascismo. Todos os processos de vitimização, acima descritos, são empregados pelo líder fascista para criar e ampliar um sentimento coletivo de vitimização, que ajuda a estabelecer uma identidade de grupo para seus seguidores. Esta identidade, que já descrevemos em outras postagens, é, em sua natureza, contrária aos direitos individuais e à democracia liberal. O nacionalismo fascista é extremado, cego e impessoal, excluindo qualquer possibilidade de individualismo, que violaria a pretendida impessoalidade de seus adeptos. Este nacionalismo doentio sempre cria um ou mais eles para combater, controlar e vilipendiar, de forma a manter aceso seu senso de dignidade de grupo, mesmo em meio a crises e fracassos.
Os processos de vitimização dão uma nova dimensão e clareza à compreensão da dualidade entre o nós e eles. Na sociedade moderna, “Nacionalismo, tribalismo, alienação, medos de mudança social e ódio contra forasteiros estão em alta novamente, à medida que as pessoas, trancadas em suas ilhas de partidários e bolhas de filtros de redes, estão perdendo o senso de realidade compartilhada e a habilidade de comunicar-se através das fronteiras sectárias e sociais.” (Kakutani, Op. cit., pág. 11.) Com a exploração dos processos de vitimização, pelos líderes fascistas, em todo mundo, ondas de populismo e fundamentalismo vêm elevando os apelos ao medo e ao ódio, ao invés do debate racional, erodindo instituições e substituindo o conhecimento dos especialistas pela “sabedoria” das multidões. No Brasil, o nacionalismo baseado na vitimização alcança sua expressão máxima no lema do atual governo fascista, “O Brasil acima de tudo; Deus acima de todos”, baseado no hino alemão da era nazista, “Deutschland über alles” (Alemanha acima de tudo.) O indivíduo não existe (ou está subjugado pelas leis divinas). Deus e o Brasil falam pela boca do líder, que resolverá toda injustiça e nos livrará do inimigo. (Inimigo? —os petralhas?)
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